PORTOS: Defesa da Concorrência em setores regulados

Publicado na Revista Conjuntura Econômica, v. 64-2, p. 46 – 48, em 01/02/2010.
Por: Rafael Pinho Senra de Morais

Embates recentes demonstram conflitos de competências nas interações entre a Defesa da Concorrência (ou Antitruste) e a regulação de setores específicos no Brasil. Mas isso com certeza não é exclusividade nossa, como evidencia o atual confronto nos Estados Unidos entre a Divisão Antitruste do Departamento de Justiça e, entre outros, o Departamento de Transportes sobre a apreciação dos acordos entre companhias aéreas ou sobre a proposta legislativa de eliminação da isenção de escrutínio antitruste que detêm ainda hoje as companhias de transporte ferroviário.

No Brasil, ainda existe uma visão (um tanto quanto ultrapassada) de que regulação e concorrência são atividades completamente distintas e de que cada agência ou organismo governamental teria sua competência exclusiva dentro de uma esfera de atuação estanque. Opta-se muitas vezes pelo conflito político mais do que pela colaboração entre órgãos cujo objetivo final — diga-se de passagem — é o mesmo: mais competição (leal) em toda a economia, para o benefício dos consumidores finais dos bens e serviços, ou seja, de toda a sociedade.

O que se quer salientar no presente artigo é a necessidade de atuação dos órgãos do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) — quais seja Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), Secretaria de Direito Econômico (SDE) e Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE) — perante os órgãos reguladores a título consultivo ex ante. É importante, quando se queira delinear uma estrutura para determinado setor, ter em mente a mais eficiente que se possa almejar e a eventual facilitação de práticas anticompetitivas que a estrutura gerada pode propiciar. Para enfatizar este ponto, uso no presente artigo o setor de portos, a partir da evidência que a atualidade nos fornece.

Denúncia
Veja-se este exemplo2 sobre tal aparente falta de articulação, ao menos ex ante, dos órgãos do governo responsáveis pela regulação e pela defesa da concorrência. Em abril de 2009, a SDE instaurou processo contra várias empreiteiras suspeitas de cartel para “fraudar o caráter competitivo” de duas licitações do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no valor de R$ 400 milhões para as obras de dragagem nos portos de Santos (SP) e Rio Grande (RS). A Secretaria Especial de Portos (SEP) está promovendo 16 licitações para dragagem de 16 portos (todas elas incluídas no PAC, com orçamento de R$ 1,5 bilhão), e a denúncia veio da própria SEP, que organizou as licitações. Parece tratar-se de prática de conluio (ainda que tácito) para que cada grande empreiteira na prática entre sozinha em cada uma das licitações. Em cada licitação, várias propostas eram feitas, mas todas menos uma eram superiores ao teto que constava do edital — o que as desclassificava automaticamente. Num caso específico, o limite era de R$ 198 milhões, várias propostas foram feitas acima disso e a única abaixo era de R$ 197 milhões, ou seja, com um “desconto ínfimo”, conforme consta do processo que corre na SDE.

Seria mais producente que as instâncias do SBDC houvessem sido consultadas de antemão, na época da elaboração do processo licitatório: uma contribuição ex ante do SBDC poderia economizar em recursos públicos e gerar um resultado melhor para a sociedade. Como já nos ensinou Paul Klemperer há algum tempo, condição mínima para o bom funcionamento de leilões concomitantes do tipo inglês (i.e. o típico leilão de preço ascendente mais conhecido e usado) é que o número de lotes leiloados seja inferior ao número de participantes potenciais.3 Claro que é importante agora investigar o caso, mas o país ganharia muito mais se os problemas não tivessem ocorrido, graças a um desenho adequado do leilão — e certamente o SBDC tem muito a contribuir nisso. Assim, possivelmente as obras já estariam sendo implementadas, e a um preço mais competitivo para os cofres públicos.

Veja-se este outro exemplo.4 Em declaração recente, referente à transação acionária por trás da construção do novo terminal de embarque e desembarque de mercadorias no Porto de Santos, a SEAE se eximiu de qualquer responsabilidade na consideração dos aspectos específicos envolvendo as práticas contratuais na operação de portos. Isso apesar de os técnicos da SEAE terem ouvido de empresas que operam terminais públicos de contêineres que elas sofrerão concorrência desleal por terem obrigações contratuais relacionadas à mão de obra e pagamento de arrendamento à autoridade portuária a cumprir. Já o futuro novo terminal, por ser privativo de uso misto, não terá as mesmas exigências.

Na visão da SEAE, entretanto, essas questões se referem à regulação e especificidades institucionais do setor portuário, que não estão na alçada da análise concorrencial das secretarias. Tais particularidades, não custa salientar, claramente podem significar barreiras impeditivas da competição. Tendo por hipótese que as informações da reportagem sejam verídicas, a postura da SEAE no tocante ao setor portuário parece opor-se a seu papel institucional de promoção ou “advocacia” da concorrência.

No mesmo sentido da articulação entre as atividades antitruste e regulatória manifestou-se a nova assistant attorney general da divisão antitruste do Departamento de Justiça norte-americano, em recente apresentação (12/05/2009) perante a Câmara de Comércio daquele país, cujo sugestivo título foi “Vigorous antitrust enforcement in this challenging area”.

Preocupação
No setor portuário em particular, é preocupante a estrutura física e contratual que se está criando no Brasil. Muitas vezes a discussão paira sobre questões puramente jurídicas, como se é melhor termos contratos de concessão ou de autorização, e perde-se o foco da avaliação dos aspectos competitivos relevantes.

Por exemplo, pode uma empresa exportadora em determinado setor que só tenha acesso aos portos pú-blicos competir em igualdade de condições com uma exportadora que detenha um terminal privativo? Ou seja, a escala mínima necessária e a restrição de liquidez (isto é, falta de deep pocket) para construir um terminal portuário próprio podem representar uma barreira à sobrevivência de uma empresa menor?

Poder-se-ia, portanto, aplicar aí a doutrina das essential facilities e obrigar (e regular) o acesso das empresas menores sem terminal privativo aos terminais privativos de empresas maiores? Não custa enfatizar o grande impacto que respostas a estas perguntas podem representar em diversos setores de um país como o nosso, grande exportador de commodities, muitas vezes por terminais privativos especializados.

Esta é apenas uma dentre inúmeras questões que se poderão levantar quando resolvermos olhar mais de perto o arcabouço institucional sobre o qual se está estruturando o setor portuário no Brasil. Cabe neste momento preocupar-nos com as limitações à capacidade de concorrer que estão possivelmente sendo criadas para empresas importadoras e exportadoras e, em última análise, com o grau de concorrência para a economia brasileira como um todo. Ou poderá ser tarde demais.

Por fim, resta ainda a questão mais de longo prazo que trata da estrutura (física) portuária que se quer ter no Brasil — e que ainda permanece sem resposta. Assim como a regulação de ferrovias visa ao mesmo tempo democratizar o acesso àquela infra estrutura e evitar que se desperdicem recursos com a duplicação desnecessária (o exemplo clássico, de livro-texto, que se quer evitar são duas ferrovias em paralelo ligando os mesmos pontos A e B), o setor portuário também deve refletir tal preocupação com o uso eficiente dos recursos (escassos) disponíveis.

Será que o Brasil precisa de 37 portos públicos e 270 terminais privativos? Será que a SEP deve investir na dragagem de 19 portos por estes apresentarem profundidade (calado) muito pequena? Será que os ganhos com a especialização nos terminais privativos se sobrepõem aos ganhos de escala (e certamente de escopo em muitos casos) inerentes à atividade portuária — e que vão à direção da concentração da atividade portuária em poucos portos não especializados (e com igualdade nas condições de acesso)? Isso sem contar com as externalidades positivas que uma melhor malha ferroviária conectando menos portos poderia gerar para outras atividades, como o transporte interno de mercadorias e de passageiros.

Questionamentos como estes não têm respostas triviais e requerem estudos especializados profundos. No entanto, as respostas a eles são essenciais para a estratégia de desenvolvimento do Brasil. Ressalve-se aqui o esforço feito pela SEP com a licitação 01/2008 (processo 00045.001331/2008-14) com o objetivo de realização de um “plano nacional estratégico dos portos”, apesar de a licitação ter fracassado, conforme aviso publicado no Diário Oficial da União (25/05/2009). Todavia, a seção 4.9 do Anexo I do Edital (fls. 53), que trata dos aspectos econômicos relevantes a serem elucidados em tal plano nacional estratégico, parece demasiado tímida, deixando aparentemente de fora a maioria das questões aqui mencionadas.

Em suma, devemos olhar para o setor portuário como apenas um aspecto dentro de um projeto mais amplo. E precisamos preocupar-nos com os custos irrecuperáveis que estão sendo desembolsados através dos investimentos atuais, e que muitas vezes ocorrem via processos licitatórios mal desenhados. Mas, acima de tudo, devemos pensar na estrutura competitiva a ser gerada para o setor portuário brasileiro no longo prazo. Em todos estes aspectos, existe um papel primordial a ser desempenhado pelos órgãos do SBDC e que aparentemente não vem sendo exercido a contento. O SBDC precisa desenvolver uma colaboração efetiva com os organismos reguladores, também no setor portuário.

 


Ver a respeito à reportagem (acessada em 04/02/2010) disponível em: http://www.nytimes.com/2009/07/26/business/26antitrust.html?_r=1&hp

Fonte: Radar Online da Revista Veja (de 23/04/2009), disponível em http://veja.abril.com.br/blog/radar-on-line/arquivo/obras-do-pacsde-investiga-empreiteiras-por-fraude-de-400-milhoes-de-reais-em-licitacoes/ (acessado em 04/02/2010).

Checar por exemplo Editorial on Auctions, Wall Street Journal, 9-11-00, disponível em www.paulklemperer.org, onde o autor associa o fracasso dos leilões de licenças de telefonia móvel de 3ª geração na Itália e Holanda ao desenho equivocado da estrutura do leilão, que facilitou o conluio entre os participantes, por conta da existência de tantos lotes leiloados quanto participantes efetivos.

Fonte: Agência Estado, em 17/03/2009. (acessado em 05/02/2010 em http://www.portodesantos.com.br/clipping.php?idClipping=10122).

Nas palavras da própria SEAE (Relatório de Gestão 2006): “A promoção ou ‘advocacia’ da concorrência refere-se ao papel educacional das autoridades antitruste na disseminação da ‘cultura da concorrência’ e ao papel de, direta ou indiretamente, essas autoridades influírem na formulação das demais políticas públicas, de modo a garantir que a concorrência seja, ao máximo, incentivada. No que se refere à área de regulação, a atuação da Seae visa a elevar a eficiência dos mercados por meio da redução de barreiras à concorrência e à inovação. A Seae trabalha permanentemente na proposição de novos modelos de regulação, na reforma dos modelos existentes e na desregulamentação de setores específicos. O objetivo dessas ações é atualizar regulamentações econômicas, de modo a estimular a concorrência e permitir, aos mercados, a autodeterminação de suas principais variáveis. Sempre que possível, busca-se a eliminação parcial ou completa de normas que dificultem o acesso de novos produtores ao mercado como forma de melhorar, por meio da maior competição, o desempenho de um segmento específico.”

Em seu discurso, Christine A. Varney enfatiza que “a Divisão Antitruste não está incumbida somente da aplicação das leis antitruste, mas também apóia o desenvolvimento da política da concorrência de maneira mais ampla”, no que inclui “orientar as agências reguladoras incumbidas de monitorar a indústria”, incorporando “tendências de mercado e dinâmica” na análise. Mais adiante, Mrs. Varney explicita seus esforços “para fomentar as discussões entre agências com respeito às questões de concorrência levantadas por regulamentações e políticas existentes e propostas”. (Tradução livre; texto original disponível em http://www.justice.gov/atr/public/speeches/245711.htm(acessado em 05/02/2010).

 

Publicado originalmente em: http://portalibre.fgv.br/main.jsp?lumPageId=4028809A203E1B74012048F081154692&contentId=8A7C823326CD886101272E7E90316F7C

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