Contra o interesse público

Publicado no O Globo em 19/12/2011, Opinião, p. 7
Por: Lúcia Helena Salgado e Rafael Pinho de Morais

A compra da Sadia pela Perdigão, constituindo a Brasil Foods (BRF), despertou o interesse no debate sobre defesa da concorrência, desde sua notificação. Acentuou-se com a leitura do voto do conselheiro-relator contrário à fusão — um documento de 500 páginas que fez estremecer as ações das empresas requerentes na Bovespa e a convicção do grande emprestador BNDES.

Tivemos a oportunidade de questionar a fusão Sadia-Perdigão em seus mais diversos aspectos — e acreditávamos que o assunto acabava ali. Pusemos em xeque o trâmite dentro do Cade, qual seja a renegociação do desfecho do caso após encerrada a instrução e após ter sido proferido o voto do conselheiro-relator. Questionamos a negociação em si do Termo de Compromisso de Desempenho (TCD) para a aprovação condicionada: a toque de caixa e sem a participação do conselheiro-relator, que havia longamente estudado e instruído o processo. Apontamos que aos argumentos contrários à fusão não foram contrapostos outros pela aprovação com restrições. Por fim, questionamos o próprio mérito da decisão, i.e. os termos do TCD firmado entre a autoridade defensora da concorrência e as empresas participantes da fusão para supostamente garantir que a fusão não lesará os consumidores.

Afirmamos que mesmo com as restrições a compra da Sadia pela Perdigão se tornaria “um pesadelo para os consumidores”, em termos de perspectivas de aumento de preços, piora da qualidade dos produtos e redução dos incentivos à inovação. Achávamos que esse era o fim da história. Os acontecimentos posteriores à decisão e que culminaram com o acordo anunciado entre BRF e Marfrig, contudo, conseguiram piorar o pesadelo.

Logo após a aprovação com restrições via TCD, a BRF anunciou a perspectiva de novas aquisições. Desta vez, o Cade rapidamente pronunciou-se publicamente que não permitiria. Dado que o Cade sinalizou que não permitiria mais expansão via aquisições, vimos agora uma “inovação” por parte da BRF. A empresa utilizou-se dos termos do TCD para fazer um acordo com o único concorrente com algum peso que ainda existe no mercado brasileiro: a Marfrig, detentora da marca Seara.

Pelo acordo, a BRF repassará à Marfrig ativos escolhidos pela própria BRF em quantidade suficiente para atender aos termos do TCD firmado com o Cade. Segundo noticiado, a BRF transferirá 12 marcas (Rezende, Wilson, Doriana e outras), dez fábricas, abatedouros de aves e suínos e oito centros de distribuição à Marfrig. Em troca, A BRF receberá R$200 milhões e as operações de Paty, Barny e Estancia Del Sur (fabricantes argentinas de alimentos processados), entre outros.

Temos, por conseguinte, nada mais nada menos que um conluio institucionalizado, que poderá agora ser avalizado pela autoridade defensora da concorrência. Vale lembrar que conluio não é só cartel que combina preços, mas também divisão geográfica de mercado. Algo do tipo: “Eu vendo aqui, você vende ali.”

Do ponto de vista estritamente técnico, é inaceitável. Remete-nos a tempos sombrios de pisoteio ao antitruste. Como especialistas, porém meros espectadores — que não participam do pleito nem de sua contestação —, não nos podemos calar face à afronta ao interesse público tutelado pelo direito da concorrência. Continuamos a postos — e falando para quem puder ouvir.

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